Facilmente ignorável

É fácil não ler o texto abaixo. É só... não ler.

Manifesto BBB8 – Da (minha) alienação.

Recebi nos últimos dois meses uma quantidade anormal de correntes de e-mail sobre Big Brother. A maior parte delas (senão todas) demonstravam, preto no branco, as razões pelas quais eu sou um alienado. Esses e-mails me iluminaram! Me fizeram ver que morrem diariamente, no Rio de Janeiro, 800 pessoas por bala perdida; no mesmo período de tempo, na África, 9 mil crianças são devoradas por leões famintos. E eu aqui, fechando os olhos às desgraças do mundo e assistindo BBB.
Em primeiro lugar é preciso ressaltar uma coisa muito importante: o BBB8 é também uma desgraça. Ninguém fode, ninguém briga, ninguém sai no tapa, ninguém joga a mala alheia na piscina. Em segundo lugar (e talvez mais importante que o primeiro) está o fato de que 58 mil mineiros morrem todos os anos em São Paulo por abstinência de pão de queijo de qualidade. Isso, claro, enquanto você (sim, você! O autor da corrente de e-mail) lia Machado de Assis.

Enquanto você se divertia com o amor de Jerônimo por Rita Baiana ou o pau comendo solto na bundinha do Sérgio em O Ateneu (nenhuma das obras é do M. de Assis), 7 velhinhas foram atropeladas na Av. Paulista, 15 músicos de rua tiveram seus instrumentos roubados em Maceió e 55 charlatões de cabelo grisalho enchiam o bolso de grana em Brasília. Você... culto como é (e como se esforça pra demonstrar ser) não tem vergonha de ter perdido tempo assistindo Lavoura Arcaica pela milésima vez enquanto o Brasil a sua volta era despedaçado pela classe dominante? Você nunca lamentou não ter estudado física ao invés de assistir E O vento Levou? Ou será que a razão única pela qual você se permitiu esse deleite é o fato – estatísticamente incontestável – de que quem mais lê “coisa boa” no Brasil é a tal classe dominante? Opa! Tá bom, é mentira. A Dona Cleide, entre uma tirada de pó da sua estante e uma passada naquela sua camisa bordô, sempre dá uma folheada na obra do Érico Veríssimo (e, vez ou outra, curte um poema do Patativa do Assaré, mesmo aqui, do Sudeste).

O Big Brother me aliena. Ele não me acrescenta nada do que outros programas de TV inserem de “cultura” na mente das pessoas. Às vezes choro escondido de noitinha, abraçado com o meu action figure do Marquês de Rabicó, por ter perdido a imensa carga acadêmica da novela Senhora do Destino ou do documentário sobre a savana africana do Globo Repórter. Quando eu vejo o leopardo devorando a zebra, meu amigo, é aí que eu sei que um dia vou poder salvar o meu país.
Vamos abrir o olho, vamos? Quando você vai pro exterior (peguemos a Venezuela) e liga a TV no hotel e tá lá passando aquele concurso de Miss e você sabe, naquele instante, que está consumindo cultura venezuelana, não é bom? E bom que eu digo porque você se sente vivido e cheio de cultura... e não por causa do biquini atochado no rêgo da miss. E, realmente, o concurso de Miss da Venezuela é muito mais inteligente do que o Big Brother Brasil. Num país com um IDH irrisório (parecido com o do Brasil), incentivar as meninas a se preocupar com a estética acima de outros valores é uma coisa muito da bonita. Mas sabe qual é a verdade sobre o concurso de Miss Venezuela? A verdade é que o concurso é um movimento apoiado (e assistido) por pessoas de todas as classes do país, principalmente as camadas mais pobres da população. Dessa maneira o concurso de Miss Venezuela é, incontestavelmente, cultura da Venezuela; apesar de não ter sido criado lá – o que o “Miss” já denuncia.
Da mesma forma o funk é cultura brasileira... e o Calypso é cultura brasileira. O forró, o samba, Machado de Assis, Frank Aguiar, Jornal Nacional, Fantástico, Pânico na TV, Elis Regina, Simony e... o Big Brother. São todos símbolos da cultura brasileira. E isso se torna, mais uma vez, impossível de contradizer por uma simples razão: não existe cultura boa ou ruim. Existe apenas “cultura”.
Sempre tem aquele esperto que curte Los Hermanos e não suporta Tati Quebra-Barraco. Aquele cara inteligentíssimo (com um cabelo hippie cool) que sabe que, enquanto Los Hermanos é o símbolo do ritmo e da rima brasileira, Tati Quebra Barraco é uma vergonha pra história do Brasil (isso, claro, enquanto milhões de brasileiros sacodem a bunda ouvindo o som que veio do morro. Que, pelo menos, dá pra dançar). Quando é que cultura de “intelectualóides”, aquela que não alcança o povão (que, erroneamente, é chamado de minoria também) e que não gera qualquer identificação entre o indivíduo e a cultura do seu país, vai ser mais relevante do que aquilo que um povo produz e consome? Do que aquilo que faz o gringo sorrir quando assiste na TV do hotel em Aracaju e sabe, muito feliz, que está consumindo cultura brasileira? Quando? Enquanto você tem um assunto em comum com duzentas mil pessoas ouvindo Los Hermanos... quem vê Big Brother tem do que falar com 55 milhões de brasileiros. Só mais mesmo um otário pra achar que quando esboça um sambinha de raíz está se comunicando com a cultura do povão. O jovem do morro trocou o samba pelo funk e pelo axé já faz uma pá de tempo, companheiro.
Daí você diz: “Não digo que a minha cultura elevada e inquestionável está acima do que a maioria da nação produz. Só digo que a maioria da população seria mais feliz, mais inteligente e saberia viver melhor se consumisse aquilo que eu consumo”.
Pois eu digo mais. Digo que caso a maioria da população se apaixonasse por aquilo que você produz e consome; mais rápido do que dar play em um CD, você arranjaria outra coisa pra produzir e pra consumir. Porque ser do povão ninguém nunca quer ser.
O Big Brother é um direito legítimo meu e de todas as pessoas que o assistem. Uma demonstração do interesse do povo brasileiro por um assunto qualquer – por mais fútil que ele possa parecer. Durante o dia esse povo fez serviço braçal; limpou janelas e carregou saco de cimento. Ou nem isso: assinou documentos, pegou o ônibus lotado ou demitiu um empregado. Isso não importa. Ninguém tem o direito de assistir Big Brother só porque chegou cansado em casa. Temos o direito de ver – e gostar – porque temos o direito de ver e gostar; mesmo que isso não nos torne líderes brilhantes da nação. Afinal, não são as pessoas mais inteligentes do país os responsáveis pelos atos mais obscenos desde a época em que a ética ainda fingia existir?

Que sejamos todos burros então, desde que não saibamos que há sempre a possibilidade de ser corrupto. Há no Brasil males muito piores do que o destino do tempo livre das pessoas. Isso é da conta de cada um.
Da próxima vez que for escrever uma corrente de e-mail, Sr. Mtv (“desliga-a-tv-e-vai-ler-um-livro), então, que seja dando soluções reais pros problemas seríssimos que você cita. Não uma merda de Power Point cheio de “achismos” e nenhum argumento. Até lá, me deixa em paz aqui vendo o Marcentauro brigando com o verdureiro emo.
E se o meu texto tiver muitos erros... bom, pelo menos eu tenho a desculpa de que estava assistindo BBB. E a sua desculpa, é qual?

Abração.
PS: Antes de qualquer reclamação: não estou colocando o BBB acima da literatura brasileira. Só dizendo que cada um lê o que quiser e assiste o que quiser. O velho "gosto é que nem bunda... blá blá blá."